terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Sobre memória e apego

Abro suas páginas, que não estão amarelecidas pelo tempo como seria conveniente para um objeto com sua história. História? Passou os últimos oito anos dentro de uma bolsa preta que estava guardada em um armário cheio de ratos, esquecida por uma menina de 11 anos em uma praia uruguaia. Não tem muito a nos contar. É o caderno de uma menina que nos idos de 2001 (adoraria poder dizer que eram os saudosos anos 90 ou 80, o que causaria mais impacto, mas estaria mentindo ao caro leitor) era muito religiosa. Na companhia da agenda eletrônica dos 101 Dálmatas, do batom cor de rosa de menina mocinha, do par de óculos escuros, da bíblia, da carteirinha de estudante do Elias Moreira, da cópia de RG, do cartão telefônico – que não funciona mais - do cartão postal de Buenos Aires, dos 12 pesos uruguaios, 1,20 pesos argentinos, R$ 1,75 e duas moedas de um real que não têm mais validade - dinheiro amarrotado dentro de um porta moedas de camurça - o caderno esquecido provocou várias lágrimas e um trauma de semelhantes descuidos. O dizimo, devidamente calculado, separado e cuidadosamente anotado num pedaço de papel, não foi nem nunca será entregue à igreja Quadrangular pela menina que, desde 2001, cresceu bastante.

Foi em Piriapolis – mar gelado para contrastar com os focos de incêndio que assolam este pequeno pais de moeda inflacionada – praia localizada a cerca de 100 quilômetros de Montevidéu, capital do Uruguai. Dentro do carro, duas horas distante do restaurante El puertito Don Anselmo – o fato de o nome do restaurante ser o mesmo de meu pai ajudou muito depois – a mini Ariane lembrou-se da bolsa preta tipo mochila, abandonada num murinho ao lado esquerdo da mesa na qual a família havia almoçado. Quis voltar para resgatar o que na época eram bens preciosos. Meu pai, sisudo, se recusou. Chorei. Chorei. Chorei, ate o cansaço me vencer.

Já no Brasil, minha mãe, Cristina, sempre atenciosa e protetora – se usasse saias, me esconderia embaixo delas até hoje –, ligou para o restaurante pedindo que enviassem a bolsa para nosso endereço, em Joinville. Ela foi ansiosamente aguardada, mas nunca chegou.

Algum tempo depois, forçosamente conformada, imaginei o proprietário do restaurante distribuindo meus bens entre suas filhas pequenas – na minha cabeça, elas existiam, e eram três. A primogênita iria vibrar com a agenda eletrônica dos 101 Dálmatas que tinha diário, calculadora e tudo mais, pena que era em português e ela não conseguiria descobrir a senha. Sonhadora, passaria o batom cor de rosa e iria para frente do espelho se admirar. A mais nova completaria com desenhos as páginas restantes do caderno da Doutrina Cristã e a do meio iria passear na praia com óculos escuros importados. À noite, juntas, elas leriam a bíblia, mas arrancariam a plaqueta na qual estava escrito o nome completo da antiga dona, para tomar posse definitiva do sagrado livro.

Em janeiro de 2009, retornamos a Piriapolis. Minha mãe veio com a ideia de voltar ao restaurante e, quem sabe, perguntar pela bolsa. Eu ri dela, claro. Com esse mundo tão cruel, até parece que ela ainda estaria lá. Mesmo com meu pessimismo natural, um vermezinho surgiu na boca do estômago. Mal chegamos ao El puertito Don Anselmo, minha ansiedade misturada com incredulidade, corri ao caixa e, num péssimo espanhol, perguntei à mulher que estava ali se havia uma bolsa preta, de menina, esquecida muitos anos antes. Surpresa. Estava la. "Procure o Mario" (Mario? Ele deveria se chamar Anselmo), disse ela. "Tem certeza de que a bolsa esta ai?", perguntei. Ela tinha. Todos no restaurante sabiam da existência da bolsa preta, há oito anos guardada, esperando que sua dona a viesse resgatar.

No bar, de tão escuro, tive dificuldade de encontrar Mario. Mas encontrei. Expliquei a situação. Ele me olhou e disse "como você cresceu, era tão "chica" antes". E das entranhas de um armário de madeira, velho e atulhado de coisas de restaurante, ele retirou a bolsa. A minha primeira bolsa. Estava conservadíssima para uma bolsa perdida há oito anos. Eu quis chorar, mas tive vergonha. Eu quis abraçar o Mario também, por ter guardado a minha bolsa, por colocar veneno de rato dentro para que minhas coisas não fossem comidas, talvez até por não ter filhas, mas também senti vergonha. O leitor deve estar tão surpreso quanto eu naquele instante com este fato insólito. Pena que logo depois veio outro instante e outro instante e outro instante, e a magia do acontecimento se desvaneceu para mim. Queria a todo momento ver com outros olhos as alegrias e mazelas da vida. Mentira, só as alegrias.

Mario disse que tentou enviar a bolsa e ela retornou – o que significa que ela pelo menos fez uma viagem nesses oito anos, pena não podermos descobrir por quais paragens andou (até tentei perguntar, mas a bolsa preta, talvez zangada e rancorosa pelo meu esquecimento, não respondeu) -, mas sabia que iríamos buscá-la um dia, e por isso a guardou. Por oito anos.

Ate hoje tenho uma memória meio estranha. Fatos, frases. Objetos, não mais. Espero que o restaurante ainda esteja lá quando eu voltar, para esquecer mais algumas coisas. Talvez leve meus filhos, se algum dia os tiver.

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